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"Uma livre pensadora", entrevista com Richard Bernstein

Atualizado: 29 de nov. de 2021

por Nádia Junqueira e Adriano Correia

(publicado na Folha de São Paulo em 28.11.2021)



Richard J. Bernstein tinha 40 anos e Hannah Arendt 66 quando se conheceram em 1972, no Haverford College, na Pensilvânia. Ele era professor daquela instituição, enquanto ela estava ali para fazer uma palestra. Ela já era uma pensadora consagrada, professora da New School For Social Research, mundialmente conhecida por suas obras, como Eichmann em Jerusalém, Sobre a Revolução, A Condição Humana e Origens do Totalitarismo, além de dezenas de artigos e ensaios. Bernstein havia acabado de publicar seu segundo livro, Praxis and action: contemporary philosophies of human activity. Seria natural que Bernstein estivesse interessado no trabalho de Arendt, em conhecê-la pessoalmente e lhe abordasse, ao final da palestra, dizendo que admirava seu trabalho. O que aconteceu foi justamente o contrário: Arendt foi quem quis conhecer Bernstein porque havia acabado de ler este seu livro.


Depois daquela palestra, Arendt e Bernstein saíram para jantar e ficaram conversando das oito da noite às duas da manhã. Ou melhor, discutindo e discordando um do outro. Bernstein diz que aquele encontro na Pensilvânia marcou o início da amizade entre os dois, que duraria três anos, até a morte de Arendt, em 1975. Mesmo depois de sua morte, a presença de Arendt sempre foi viva para Bernstein. Bernstein foi admitido em 1989 no departamento de Filosofia na New School For Social Research, onde Arendt lecionou até os últimos dias de sua vida. O filósofo americano atua até hoje ali e publicou Por que ler Arendt hoje? em 2018, provando a atualidade do pensamento de Hannah Arendt depois de 43 anos de sua morte. A obra foi traduzida para a língua portuguesa por Adriano Correia e Nádia Junqueira e publicada, no último mês, pela Editora Forense Universitária. O livro será lançado no dia 1º de dezembro durante o XIII Encontro Internacional Hannah Arendt, realizado virtualmente pela Unirio, com uma conferência de Richard J. Bernstein.


Bernstein é autor de vários outros trabalhos sobre Hannah Arendt: dos livros “Hannah Arendt and The Jewish Question” e “Radical evil – a philosophical interrogation” e artigos como “Rethinking the Social and The Political”, “Hannah Arendt: the ambiguities of theory and practice”, “Did Hannah Arendt change her mind? From radical evil to the banality of evil”, “Are Arendt’s reflections on evil still Relevant?, Is evil banal? A misleading question”.


Neste livro, ele mobiliza importantes conceitos da autora, recupera elementos de sua vida, recoloca polêmicos debates provocados por ela e apresenta como eles nos servem para pensar os tempos sombrios vividos por nós hoje. O diálogo estabelecido por Bernstein com Arendt foi constante, cuidadoso, comprometido com a independência do pensamento e com a trajetória da autora, sem se furtar em ser crítico ou a discordar dela. Todos esses traços permeiam esta obra. Bernstein compartilha com Arendt o desejo de compreender seu próprio mundo e a convicção de que esta compreensão implica a necessidade de criar novos conceitos e articulações entre eles para abarcar fenômenos novos, em vez de buscar encaixar estes fenômenos em padrões de julgamento preconcebidos. Ambos julgavam que temos de “pensar sem corrimão”, mais ainda em tempos de crise. Nesta entrevista concedida no último mês aos tradutores, Bernstein conta como surgiu a ideia de escrever este trabalho, indica como o pensamento dela está mais atual do que nunca e como ela nos ajuda a pensar os desafios de nosso tempo.


Você tem cultivado uma longa interlocução com Arendt há quase cinquenta anos e que começa no início dos anos 1970, quando você discutiu com ela pessoalmente sobre diversos temas filosóficos. Contudo, este é seu primeiro trabalho como introdução ao pensamento de Arendt. Trata-se de um diálogo crítico, mas claramente um convite à leitura da obra de Arendt e uma defesa à atualidade do seu pensamento. Como se deu a decisão de desenvolver essa proposta de trabalho agora?

Eu comecei a me interessar pelo trabalho de Arendt quando a conheci, em 1972. Na época, ela era bem conhecida por seu livro sobre Eichmann, mas poucos estavam cientes do inteiro alcance do seu pensamento. Embora eu fosse muito mais jovem que ela, fomos atraídos um pelo outro. Nós nos correspondemos e nos encontramos várias vezes antes de sua morte em 1975. Com o passar dos anos, voltei a discutir sua obra muitas vezes. Encontro-me em diálogo contínuo com ela. Depois que Trump foi eleito, em 2016, referências a Arendt estavam em todas as redes sociais. Meu editor na Polity Press, John Thompson, instigou-me a escrever um pequeno livro sobre Arendt. Meu objetivo foi apresentar a amplitude de sua obra e encorajar as pessoas a lerem suas obras fundamentais. Agora o livro já foi traduzido para doze idiomas.


Em uma correspondência com Scholem, em 1963, ao enfrentar a controvérsia Eichmann, Arendt disse: “O problema é que eu sou independente. Não pertenço à nenhuma organização e sempre falo por mim mesma”. Em diferentes situações você enfatiza como preza a independência de pensamento de Arendt. Poderíamos dizer, contudo, que Arendt permanece mal compreendida porque nunca se filiou a nenhum “ísmo”, nem mesmo ao Sionismo. Liberais a acusam de ser marxista. Marxistas dizem que ela é uma liberal. O que você poderia dizer sobre o modo arendtiano de pensar?

Sempre pensei em Arendt como uma pensadora independente. Ela não pertence a nenhuma escola ou partido. Ela aborda cada tópico com frescor e perspicácia. Ela não é uma pensadora de esquerda nem de direita, mas o que ela escreve é sempre estimulante. Ela encoraja a pessoa a “parar e pensar”. Vocês provavelmente conhecem o comentário que ela fez no primeiro congresso sobre sua obra em 1972. Perguntaram se ela estava à direita ou à esquerda. Ela respondeu à pergunta de maneira brilhante afirmando que as questões importantes de nosso tempo não seriam respondidas nesses termos. Pensadores conservadores e de esquerda frequentemente a atacam porque ela é muito independente. Penso que ela apresenta a análise mais original e profunda da liberdade política. Durante toda a sua vida ela procurou restaurar a dignidade da política.


O que não significa que ela não caia em algumas contradições ao promover esse modo independente de pensar...


Um de seus grandes pontos cegos foi sua compreensão do racismo nos EUA. Em suas “Reflexões sobre Little Rock”, ela impôs suas categorias do social e do político. Argumentei que a maneira como ela distingue o político e o social não é adequada.

Arendt se opôs fortemente à imposição federal da integração nas escolas públicas, quando em 1954, a Suprema Corte dos Estados Unidos decretou por unanimidade que a segregação das escolas públicas violava a Décima Quarta Emenda da Constituição. Usando categorias que ela havia elaborado em A Condição Humana, ela estabeleceu uma distinção rígida entre o político, o social e o privado. Ela afirmava que a discriminação social não poderia ser proibida por meios políticos. Se pais brancos queriam enviar suas crianças para escolas onde existem apenas crianças brancas, o governo não tinha o direito de interferir. Arendt falhou em compreender as consequências desastrosas da hostil discriminação política, social e econômica dos negros nos EUA. Ela falhou em compreender como se abusou do apelo aos “direitos dos estados” para impor todo tipo de práticas discriminatórias horríveis contra os negros.

Arendt, que acreditava que o pensamento deve estar enraizado nas experiências vividas, se dedicou à compreensão dos fenômenos de massa e de refugiados, uma experiência vivida por ela mesma. Ela alertou sobre como as tensões entre Estado e Nação poderiam aumentar o número de refugiados vivendo em campos de refugiados. Hoje em dia essa crise parece ter se intensificado. Como a noção de Arendt sobre o direito a ter direitos nos ajuda a compreender esse fenômeno?

Por causa da experiência de Arendt como apátrida, ela foi uma das primeiras teóricas a ser sensível ao infortúnio dos apátridas e refugiados. Ela escreveu sobre a situação com grande sensibilidade e discernimento. Ela previu que o problema dos refugiados seria uma das maiores questões de nossa época. Suas reflexões sobre o “direito a ter direitos” ainda são relevantes hoje porque muitos refugiados estão vivendo em campos onde não têm direitos nem qualquer sentido de comunidade política.


Qual outro pensamento de Arendt abordado em seu livro você destacaria para nos ajudar a pensar os desafios de hoje?


Muito antes do discurso atual sobre “fatos alternativos”, Arendt reconheceu os perigos políticos do obscurecimento da distinção entre verdade e falsidade. Seu brilhante ensaio “Verdade e Política” mostra como ela abordava os perigos que encontramos hoje.

Se Arendt pudesse testemunhar o mundo em que vivemos, ela certamente concordaria que vivemos tempos sombrios. Mas apesar de ser uma dura crítica da Modernidade, ela acreditava que podemos encontrar novos começos mesmo nos tempos mais escuros. Como podemos encontrar iluminações para o nosso tempo?

Uma das categorias fundamentais no pensamento de Arendt é a de natalidade. Não importa quão sombrios sejam os tempos, sempre existe a possibilidade de novos começos quando as pessoas agem juntas. O começo, disse ela, é a manifestação da liberdade humana. Essa é agora a esperança para o futuro.






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